29.7.05

#28

(começo de algo longo...)

Havia sido uma batalha horrenda. Horrenda e gloriosa. Foi o tipo de batalha que faz reis dos vencedores e honra os perdedores com a memória de nela terem lutado. O tipo de batalha que semeia a inspiração de menestréis, e se transforma em belíssimos versos que são cantados em cortes e praças públicas pelo remanescer da história. O tipo de batalha que com o passar dos tempos ganha o brilho do luar, apesar de ter sido lutada em plena Lua Nova; dá meio metro de estatura a cada sobrevivente; é acrescentada de atos heróicos a cada vez que é contada e ganha importâncias, motivos e conseqüências nem sequer imaginados por aqueles que a lutaram. Enfim, foi uma batalha épica, como muitas outras batalhas, e cujos simples horrores foram esquecidos em nome da poesia e do orgulho.

O resultado final da batalha, quem perdeu ou quem se tornou vitorioso, não nos interessa. Interessa, sim, saber que neste reluzente conflito lutaram homens que entregaram os destinos nas mãos de Odin, Deus dos deuses, e um grande apreciador do sangrento e do épico. Que esta, como todas as batalhas lutadas em nome de Odin, terminou com o sagrado ritual das Valquírias, que passam pelos campos de findas lutas e colhem as almas dos findos guerreiros e as entregam ao próprio Odin, que como Deus dos deuses se alimenta de almas e sacrifícios à ele dedicados. E que, seguindo a tradição de uma Valquíria por vida perdida, 103 semi-deusas montadas em feras aladas desceram aos campos de guerra e colheram, uma por uma, as almas desincorporadas naquela batalha. Interessa saber, enfim, que uma destas almas colhidas pertencia a Njorn Nummisson.

* * *

Njorn Nummisson era um guerreiro recatado. Na verdade, nem se considerava um guerreiro, pois a verdadeira perícia de Njorn se encontrava no arco e flecha. Guerreiros, para ele, eram aqueles que se banhavam com o sangue inimigo durante a batalha. O arco era uma arte de precisão, e requeria completo esforço mental além do bruto físico. Ele tinha 22 anos de idade, completados a pouco mais de dois meses antes do dia da batalha mencionada. Dos 22 anos e dois meses de vida completos por Njorn, mais de 18 se passaram com um arco em mãos. Desde que teve força e coordenação mínima para segurar um arco e flecha, Njorn foi forçado a treiná-los. Aos doze anos, com quase oito anos de prática no arco, já era considerado o melhor arqueiro da região, e recebia convites para ingressar as embarcações guerreiras que seguiam em expedição para terras no sul e no oeste. Quando tinha quatorze, Nummis Svedson, pai de Njorn, o vendeu para uma destas embarcações, que de fato foi uma das mais vitoriosas de toda a história nórdica não somente pela qualidade de Njorn como arqueiro, mas pela qualidade de todos os homens nela presentes. Nos oito anos em que pertenceu à esta embarcação, Njorn aperfeiçoou cada vez mais a especialidade, tirando muitas vidas inimigas e ganhando o respeito de companheiros, assim como de adversários. Nesta última batalha, no entanto, foi pego de surpresa. Os inimigos atacaram durante a noite, e não houve tempo de posicionar os arqueiros. que também seriam inúteis em uma batalha noturna em que a luz do luar se recusou a aparecer. Njorn se vira obrigado a pegar uma espada para lutar. Ele era competente com espadas – havia treinado muito para tais ocasiões – mas nunca tinha lutado contra inimigos de verdade usando a espada como instrumento de guerra, ao invés do arco e flecha. Mas, como obrigação, pegou a espada e lutou. No escuro da noite, se banhou pela primeira vez com o sangue do oponente, se mostrando um valoroso combatente também com a espada. E tirando vida por vida, se descobriu como guerreiro, clamando o nome de Odin cada vez que outro corpo caía pelas lâminas de sua espada. No entanto, a glória de guerreiro logo cedeu lugar ao terror da batalha. A última vida que tirou foi a de um jovem, que para melhor lutar no escuro se equipou de uma tocha acesa (usada também para trocar golpes com inimigos). Quando Njorn lhe penetrou com a espada já coberta pelo sangue alheio, o jovem trouxe a tocha para perto de seu rosto, e Njorn pode ver aquilo que nunca havia visto antes – a vida do inimigo se esvaindo, as esperanças e os ideais partindo das jovens feições e a simples dor e o horror da morte entrando no corpo que perdia a rigidez e a imponência. A visão da morte face a face aterrorizou Njorn por alguns segundos, e o perseguiu pelo resto da vida. Só que, devido a distração em meio a batalha, o resto da vida e os alguns segundos se tornaram iguais, e assim Njorn morreu na batalha contra o inimigo.

Alguns segundos não são o suficiente para mudar muita coisa na vida de um homem, mas foram suficientes para mudar bastante na morte de Njorn. Nestes poucos instantes entre ver a morte de outro e encontrar a própria, Njorn jurou, por Odin, que dedicaria a alma à vida e ao amor. Um nobre pensamento, que certamente teria sido mantido tivesse Njorn sobrevivido.

* * *

Valquírias não possuem nomes próprios – são como uma, mas ao mesmo tempo são todas individuais. São semi-deusas cada uma delas, mas existem apenas a serviço de Odin. São espíritos, pois não poderiam colher almas se não os fossem, e sendo espíritos, são livres de sentimentos. No entanto, às vezes, por um capricho do próprio Odin, espíritos sentem. Foi o que aconteceu quando uma delas colheu a alma de Njorn. A Valquíria sentiu.