25.7.05

#23

O imperador usava roupas negras. O corvo que o acompanhava havia morrido misteriosamente durante a noite. De luto, ele saiu na sacada de onde fazia os esperados anúncios imperiais, e decretou aquele o dia do corvo. Seria um feriado nobre, marcado por uma festa em que as pessoas se vestem de negro, de preferência com plumas, e assustam os maus presságios para longe. Logo no primeiro ano, parece ter surtido efeito -- a colheita aquele outono foi recorde, e nunca um inverno teve tanta bonança. Até as cigarras puderam comer bem, ao lado das formigas. Acreditou-se, então, que aquele corvo trazia todo este bem para o império, e criou-se a lenda do deus corvo, que colocava não só o pão na mesa, mas também os queijos e as fatias de carne para recheá-lo. O imperador ficou feliz com isso.

Nos primeiros cinco anos, o dia do corvo cresceu cada vez mais, ganhando a participação até dos reinados mais distantes. E a abundância permaneceu, proliferou, e o deus-corvo ganhou fiéis que nunca perderia. O imperador, agora chamado de imperador-corvo, desfrutou desta abundância, banhando as colunas do palácio em ouro, e acrescentando uma gigantesca estátua de um corvo, feita em platina maciça, na praça central da cidade. Praça que era também o ponto de feira na época de colheitas. Deu certo, e por mais cinco anos as plantações foram mais produtivas ainda. Começaram a armazenar o excesso de comida em grandes silos -- as pessoas gargalhavam nas ruas diante de tamanha felicidade e fartura. Os cidadãos aclamavam o deus-corvo como o benfeitor de todos, e ergueram templos em sua homenagem. Não faltavam devotos; e os devotos aumentavam em quantidade e em tamanho -- o povo foi engordando, com tanta comida pela frente. Os próximos três anos foram os mais produtivos de todos, e a engorda foi tanta que os devotos ampliaram os templos e as entradas dos templos para acomodar a todos. A estabilidade e felicidade geral era notada por um aumento espantoso na taxa de natalidade do império inteiro. O império não só engordou, como se fortaleceu, e triplicou de tamanho nestes três anos. Cada região tomada pelo império passava a desfrutar também da boa fortuna do deus-corvo, e os silos do planeta inteiro foram se enchendo.

No décimo-terceiro ano, uma nuvem negra cobriu a cidade central do império. Não era chuva, mas corvos. Eles pairavam sobre a cidade, se concentrando particularmente em volta do palácio e da praça central. Ao saber da notícia, o povo do império sentiu que era mais uma grande dádiva a caminho. Aos poucos a população dos reinos vizinhos vinham de viagem para poder prestar homenagem ao deus-corvo. Em poucas semanas, já apareciam cidadãos dos mais distantes povoados, procurando a dádiva do corvo. A nuvem de corvos, assim como a multidão, se ampliava, e agora os corvos cobriam não só a cidade inteira, mas os subúrbios, e corvos já apareciam também em grandes concentrações nos reinados imediatamente adjacentes. Não havia mais dia sobre o palácio do imperador -- mas sim uma noite sem estrelas, repleta das plumas escuras dos corvos bloqueando a luz do sol.

Um dia, no dia do corvo para ser mais preciso, o imperador saiu na sacada como de costume. Estava usando roupas pretas, e o adorno em forma de cabeça de corvo sobre a cabeça. As belas e longas mangas de sua manta formavam como uma asa. Neste dia ele não fez nenhum anúncio. Subiu no muro da sacada, e pulou. O povo se espantou, mas em êxtase viu o imperador planar e então voar, batendo asas. As mangas do manto não pareciam mais ser mangas, mas eram asas de verdade. A cauda do manto já não mais flutuava, mas sim ficava enrijecida, como penas do rabo de um pássaro. O fino nariz do imperador se alongou e logo se transformou em bico. A população imperial gritou em festa, vendo que o líder deles havia se tornado a personificação do deus-corvo na terra.

E então todos os corvos pararam de voar em rodeios, e em conjunto desceram em rasante. Começaram atacando os olhos dos devotos, bicando, retirando os globos oculares do lugar, jogando-os no chão. O pânico começou, e todos começaram a fugir. Alguns poucos sentiram que essa era a entrega máxima ao deus-corvo e abriram o braço para acatar as bicadas negras. Não ficaram decepcionados. Outros tentaram lutar, mas logo eram derrotados, não somente pelos corvos, mas pela multidão fugindo, ou pelos devotos mais fanáticos protegendo o deus-corvo. Após arrancarem os olhos, os corvos começavam a comer da carne ainda viva de cada um, pelos buracos deixados. As pessoas tentavam rolar e escapar ainda cegas, mas não conseguiam -- eram muitos corvos. A nuvem negra que atacava se espalhou por todo o império, deixando somente carcaças de pessoas e de silos, comendo toda e comida e toda a população de todo o império. a população gorda foi substituída por um domínio de enormes e obesos corvos, que passaram a andar na terra de tão pesados que estavam e não conseguiam mais voar. Os corvos gordos, felizes, sorriam andando livremente pelas terras dantes dominadas pelos homens. Da sacada do palácio, o imperador-corvo, polindo o bico negro com as brilhantes plumas das asas, permanecia sorrindo.

No fatídico dia de luto treze anos antes, não teria sido o corvo que havia morrido misteriosamente, mas sim o imperador.